Minha mãe, meu veneno: relação mãe e filha esconde conflitos sob o véu do tabu
Filmes, livros e documentários debatem um lado perverso da maternidade: crueldade velada e falta de solidariedade nas relações mãe e filha

A relação mãe e filha é mostrada de um ângulo bem distante do mito do amor incondicional no filme Como os Nossos Pais, da diretora Laís Bodanzk e contemplado com 6 Kikitos de Ouro no último Festival de Gramado (incluindo melhor filme e direção). Representada por Maria Ribeiro (melhor atriz em Gramado), a protagonista Rosa enfrenta uma mãe dotada de um excesso de crítica, e até de uma certa crueldade.
No longa metragem, a personagem pode ser uma a alegoria. Mas fora das telas, está longe de ser apenas ficção. “Existe essa crueldade, a inveja da juventude da filha e os conflitos entre esses seres humanos do sexo feminino em busca de suas afirmações. Mas se eu disser isso a uma mãe, ela não só vai negar, como vai cortar relações comigo”, conta a psicanalista Dóris Zuniga Janoni.
A psicóloga Rafaella Bergamini Bastos, que atende pela plataforma Zenklub, defende também que realmente existem, sim, disputas e falta de solidariedade nas relações mães e filhas. E mesmo não ocorrendo de forma consciente, são traduzidas em atitudes e comportamentos que podem agredir ou minar relações.
“O tema da relação mãe e filha ainda é tabu, pois vai contra todas as regras sociais e a éticas de que as mães devem amar suas filhas incondicionalmente. Esta relação ideal está muito distante das relações reais que vivenciamos por aí”, constata Rafaella.
Busca de identidade
Há na sociedade um contrato social implícito de que todas as filhas devam ser gratas à mãe pela vida e cuidado. Em contrapartida, caberia às mães uma dedicação integral, uma espécie de abstenção da própria vida para dedicar-se aos filhos.
Quando essas exigências tácitas, esperadas do papel de cada uma, não são cumpridas, o conflito se estabelece. “E isso se torna maléfico quando há a culpa e as pessoas não compreendem o porquê de não sentirem o que acreditam que deveriam sentir”, explica a psicóloga da plataforma Zenklub.
E geralmente esse fenômeno de incompreensão se estabelece na fase em que a menina começa a se tornar mulher. Durante a infância a mãe é idealizada pela filha. É como se a menina olhasse a mãe através de uma lente de perfeição.
“Na fase da adolescência, começam as críticas. É a afirmação da identidade da adolescente. Nessa hora é que a mãe deve não reagir com raiva. Porque é ai que começam os atritos entre mãe e filha”, completa a psicanalista Dóris Janoni.

Desidealização da relação mãe e filha
As especialistas afirmam que primeira coisa que se faz quando se cresce e busca-se a identidade é criticar o pai, a mãe, a família, enfim, as instituições. Esse processo só é percebido com o tempo, através da maturidade emocional. Mas também varia de temperamento para temeporamento.
Mas é quando falta maturidade para perceber isso que vêm à tona as neuroses, traduzidas em disputas. Ou atitudes perversas que vêm do inconsciente. À luz da psicologia, o amor é tão grande de mãe para filho, que muitas não aguentam serem contestadas por aqueles seres tão adorados.
“E como toda mãe é ser humano, sentimentos poucos nobres também emergem. O que é preciso é desidealizar essa relação mãe e filha. Esse é o caminho para resolver essas questões”, conclui Dóris Janoni.
O livro A Relação Mãe e Filha, de Malvine Zalcberg, vai fundo nessa questão da construção da feminilidade através da relação da mulher com sua mãe. Sob o viés das teorias freudianas e lacanianas, a autora discorre inclusive sobre a obscuridade da relação mãe e filha na literatura.
Enquanto a relação mãe e filho homem possui um arquétipo claro como o do Édipo, o que mais se aproxima desse lado tabu da relação mãe e filha são as madrastas dos contos de fada.
Crueldade materna em forma de superproteção
A condição de dificuldade de contrabalancear um amor muito grande não vem à tona somente como agressividade, alfinetadas ou excesso de crítica. A neurose em forma de crueldade materna pode também vir de outras maneiras. Uma delas é muito difícil de se perceber como algo negativo: o excesso de proteção.
No documentário francês Ma mère, mon poison (Minha mãe, meu veneno - numa tradução literal), realizado por Anne-Marie Avouac uma das histórias gira em torno de uma mãe que inventou uma doença para a filha.
Não só fez a menina acreditar nisso, como falsificava resultados de exames para conseguir diagnósticos e, com isso, privar a filha de ir à escola, de ter amigos ou levar uma vida normal.
Estigmas de gênero também influenciam
Mas o que pode levar mães a tamanhas aberrações na relação com suas filhas? Para a psicóloga Rafaella Bergamini Bastos, as causas têm raízes também na formação de nossa cultura de definição de comportamentos pelo gênero.
“A sororidade é o sentimento da mulher ter empatia e ser solidária com outras mulheres. Esta forma de se relacionar das mulheres se perdeu na medida em que os homens escolhiam suas mulheres e as mulheres eram escolhidas”, comenta Rafaella. Isso fomentou uma espécie de competição.
Na sociedade, os meninos também cresciam participando de atividades em equipes como o futebol. Já as meninas não desenvolviam o sentimento de pertencimento a um "time", por terem que ser contidas e, até pouco tempo, castradas na infância para que se portassem como "uma menina".
“Esses e outros inúmeros aspectos estão presentes na vivência de todas as mulheres que aprenderam a não confiar, não ajudar e não ter compaixão por outras mulheres. Felizmente, atualmente algumas mulheres se deram conta disso e estão fazendo movimentos para resgatar a sororidade feminina”, acredita a psicóloga.